Exclusivo: ‘Não sabia o que era Hezbollah até ser preso’, diz catarinense que foi alvo da PF 2y6y6i

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Jean Carlos de Souza, morador de ville, preso sob suspeita de ligação com Hezbollah, fala pela primeira vez após ser liberado; PF não viu elo dele com o grupo terrorista libanês

Preso sob suspeita de ligação com o grupo extremista libanês Hezbollah, o representante comercial catarinense Jean Carlos de Souza, de 38 anos, foi solto em 7 de dezembro a pedido da PF (Polícia Federal) — a corporação e a Justiça Federal não viram motivos para mantê-lo detido após esclarecimentos durante a investigação.

Apesar de estar em liberdade, Jean afirma ao ND Mais que vive em uma espécie de prisão: agora sem grades e dentro de casa. Ele mora em ville, onde vive com os filhos, de 10 e 15 anos. É a primeira vez que um dos investigados pela PF na Operação Trapiche, que apura a ligação de brasileiros com o Hezbollah, fala com a imprensa.

Jean Carlos de Souza nega qualquer ligação com Hezbollah; PF pediu a liberdade deleSolto a pedido da própria PF, Jean Carlos de Souza nega qualquer ligação com o Hezbollah – Foto: ARQUIVO PESSOAL/DIVULGAÇÃO/ND

“Eu ainda não consegui ter coragem para sair de casa. Vi apenas meus pais, filhos e ex-esposa. Eles me conhecem bem, embora ainda estejam assustados com a exposição após a prisão. A preocupação agora é com as pessoas que me amam”.

Preso na calçada de bar 195751

Jean foi preso em 8 de novembro, no Centro de São Paulo. Na calçada de um bar, ele tomava uma cerveja quando foi abordado por agentes da PF. Os policiais deram voz de prisão, esperaram-no terminar a bebida e pagar a conta para acompanhá-lo até o hotel onde estava hospedado. Lá, o representante comercial soube dos motivos do mandado de prisão temporária por 30 dias.

O processo está sob sigilo. Segundo Jean, a PF considerou três motivos para sua prisão: três viagens ao Líbano — onde o Hezbollah atua —, suposta incapacidade financeira pra viajar para fora do país e antecedentes criminais. Ele conta que ainda não entende as justificativas, uma vez que não possuía nenhum antecedente criminal.

“Quando eu li ‘Hezbollah’ no mandado fiquei tranquilo porque nunca estive com qualquer integrante de qualquer grupo terrorista ou politico em minhas viagens, e eles estavam relatando dois motivos: situação financeira para as minhas viagens e antecedentes criminais. Até hoje não entendi muito bem. Se foi por falta de condições para viajar, digo que não sou um cara rico, mas também não sou um quebrado, e quanto aos antecedentes, nunca tive arma de fogo nem pisei em delegacia”, relata.

Atuação com ouro motivou viagens, diz catarinense 3e195l

Formado em gestão de produção industrial, Jean atua como representante comercial há quatro anos. Nos últimos 12 meses ou a fazer viagens internacionais para intermediação de negócios com ouro: compra, venda e refino. “Faço checagens de negociações para que tudo ocorra de maneira segura para as duas partes interessadas no ouro”, explica.

Intermediando tais transações, Jean viajou para além do Líbano. Ele contabiliza deslocamentos para Adis Abeba, Doha, Istambul, Lima e Londres, no mesmo período.

Jean diz que não viu símbolos do Hezbollah em viagensJean diz que não viu símbolos do Hezbollah em viagens – Foto: Anwar Amro/AFP/Reprodução/ND

Nesses locais, o representante comercial diz que não se encontrou com Mohamad Khir Abdulmajid, sírio-libanês considerado o principal investigado. Ele é suspeito de recrutar brasileiros. A PF não verificou elo entre ambos.

“Abri meu celular, forneci e-mail e comprovei o que fazia no Líbano e nos outros países. Não estive com a principal pessoa investigada, não estive com o grupo citado, muito menos recebi a proposta relatada [de ser recrutado]. Foi por isso que acabei solto”, declarou.

Abdulmajid está foragido, com mandado de prisão preventiva em aberto. Lucas os Lima, outro investigado na Operação Trapiche, está preso, após também ter sua ordem de prisão convertida de temporária à preventiva — isto é, quando não há prazo para terminar.

“Se soltos, continuarão exercendo a influência que conquistaram para expandir a organização terrorista em formação no Brasil”, justificou a juíza Raquel Vasconcelos Alves de Lima, da 2ª Vara Criminal de Belo Horizonte, sobre os mandados de prisão preventida de Abdulmajid e Lima.

‘Me jogaram no meio de dois grupos’ 1l3t45

Jean diz que se preocupa com a sua segurança e da sua família. “Eu fui colocado como integrante de um grupo e jogado contra outro. Ou seja, apontado como integrante do Hezbollah e, em contrapartida, contra Israel. Isso foi um motivo para eu buscar fazer um esclarecimento no meu depoimento, e fui muito claro”.

“Fui conhecer o Hezbollah pelo delegado. Ele perguntou se eu tinha visto o símbolo do grupo na viagem. Eu respondi que não sabia qual era e pedi para ele mostrar. Quando eu vi através do delegado, eu tive mais certeza de que não estive com o Hezbollah. O símbolo deles é muito chamativo e não tem a menor hipótese de eu estar no lugar e não ter percebido, eu posso afirmar categoricamente que, com quem eu conversei e por onde eu ei, não tem ligação com o Hezbollah”.

“Eu entrei numa situação devido às viagens. Não acredito em qualquer religião, sigo apenas a Deus e Jesus Cristo, não tenho fanatismo religioso e odeio política. Curiosamente, tenho tatuado em meu antebraço uma cruz em referência a Jesus Cristo. Qualquer argumento que pudesse manter preso foi quebrado”

Vida após prisão 6h3z6r

Jean diz que a repercussão do caso o fez perder um dos contratos como representante comercial e o deixou na iminência de romper com outro. Ele não sabe se vai continuar no ramo porque acredita que precisa ter “credibilidade” para a intermediação comercial, atributo que no momento está abalado com o caso. Apesar disso, Jean não vê que a PF foi injusta.

“Parece que eles acharam o que queriam. Se existia algo, de fato, eles estão conseguindo. Eu fiquei feliz em poder esclarecer todo o ocorrido. Foram 30 dias difíceis, 22 horas trancado e duas horas de banho de sol, sem tem contato com quaisquer pessoas além dos meus advogados. A acusação era muito grave e entendo que, em 11 meses, três viagens para o Líbano poderiam trazer uma suspeita. Eles tinham que fazer o que fizeram e a decisão acertada foi pedir a revogação da prisão. Não posso ser injusto”.

A defesa de Jean diz não saber se o inquérito foi concluído por não ter o aos autos, mas avalia que a soltura do catarinense é vista como um bom sinal, sobretudo porque dois investigados tiveram a prisão prorrogada.

Procurada pelo ND Mais, a Polícia Federal afirmou que “não comenta investigações em curso”.

Operação Trapiche: por que PF mira o Hezbollah 523n36

De acordo com investigação inicial da PF — antes da deflagração da Operação Trapiche —, brasileiros estariam envolvidos em planejamentos de ataques a prédios da comunidade judaica no Brasil sob mando do Hezbollah, grupo xiita libanês que conflita com Israel.

A investigação ainda diz que sinagogas estavam sendo monitoradas e fotografadas por Lucas os Lima e relata o recrutamento de pessoas para atuar com grupos terroristas que atuam no Oriente Médio. Todo o esquema seria comandado pelo sírio-libanês Mohamad Khir Abulmajid.

O inquérito foi aberto a partir de um alerta dos serviços de inteligência dos Estados Unidos e de Israel.

Quem é o grupo Hezbollah? 553p39

O Hezbollah foi fundado pela Guarda Revolucionária do Irã em 1982, durante a guerra civil no Líbano, conflito que durou entre os anos de 1975 e 1990. Segundo a Reuters, agência de notícias britânica, o grupo fez parte dos esforços em exportar a Revolução Islâmica de 1979 para a região e também combater as forças israelitas após a invasão do Líbano em 1982.

O Hezbollah recrutou muçulmanos xiitas libaneses ao compartilhar da ideologia islâmica xiita de Teerã. Com o ar dos anos, o grupo se tornou uma organização fortemente armada, com grande influência sobre o Estado libanês.

Israel é o principal alvo do grupo extremista, e sua comunidade vem sofrendo ataques do Hezbollah há décadas tanto no país quanto no exterior.

Em 1994, o grupo foi responsabilizado por carros-bomba que atingiram um centro comunitário judaico na Argentina, além de atentados à Embaixada de Israel em Londres.

O principal motivo que coloca Israel como inimigo é a ocupação israelense do sul do Líbano em 1978. Apesar de ter se retirado oficialmente do local em 2000, as disputas continuaram na zona fronteiriça das Fazendas de Sheeba.

Em 2006, o conflito entre Hezbollah e Israel virou uma guerra que durou um mês, durante a qual o Hezbollah lançou milhares de foguetes contra o território israelense. A tensão seguiu pelos anos seguintes, com ataques em 2019 e 2021.