“Durante uma patrulha, um colega pisou em uma bomba e a perna dele explodiu. Começamos a ser atacados por membros do Talibã. Fui designado para fazer o torniquete. Quando cheguei perto, era tiro para todo o lado. Senti o cheiro de carne queimada. Ele gritava muito e não conseguia ficar parado. Tive que dar um soco para acalmá-lo e concluir o procedimento. Chamamos a equipe médica e fomos para um local seguro. Embrulhei a perna dele e levei comigo. Jamais vou esquecer isso. Foi chocante”.
O relato é de Alexandre Danielli, de 38 anos, catarinense e veterano da Guerra do Afeganistão. Natural de Joaçaba, no Meio-Oeste do Estado, Danielli foi para os Estados Unidos aos 18 anos com o objetivo de estudar inglês.

Com o ao Green Card, fez o alistamento militar e entrou para os fuzileiros navais. Enviado ao Afeganistão, o catarinense viu de perto o cenário de conflito no país asiático, onde permaneceu por oito meses, entre 2010 e 2011.
O fuzileiro, que carrega no corpo as sequelas da guerra, resume o período no Afeganistão em três palavras: difícil, conturbado e violento.
Ele conta que ficou a maior parte do tempo em três estados da região Sul do país, próximos às fronteiras com o Paquistão e o Irã. Segundo ele, a sensação de medo entre a população era constante.
“Estava em uma cidade com cerca de 30 mil habitantes e havia um grande bazar no centro. Patrulhávamos a área e estava sempre lotado. Quando estava vazio, isso significava que havia membros do Talibã por perto. A cidade inteira se escondia. Parecia gato e rato. Era o trauma do tempo em que o Talibã esteve no poder”, lembra o engenheiro militar e diretor empresarial que desde 2015 vive em Portland, no estado de Oregon (EUA), em entrevista ao ND+.
O grupo fundamentalista governou o país por cinco anos, entre 1996 e 2001 e impôs sua própria interpretação da Sharia, descrita como uma tradução literal da lei islâmica tal como está escrita no Alcorão, o livro sagrado da religião muçulmana, para a vida cotidiana.
O medo e as incertezas ganharam força no Afeganistão após o Talibã tomar o controle do país na última semana. A movimentação para a retomada ao poder se deu quando os Estados Unidos anunciou a retirada das tropas do Afeganistão.
Os norte-americanos estavam no país desde 2001, após terem tomado o controle do próprio Talibã e tentado criar instituições de Estado junto ao governo afegão. Com a fuga do presidente Ashraf Ghani no domingo (15), a capital Cabul foi tomada pelo grupo.
Mas como nasceu o grupo denominado Talibã e qual a origem dos conflitos que tanto assolam o Afeganistão?
“O Afeganistão conviveu com muitas interferências estrangeiras desde o século 19 até a atualidade. Foi uma sucessão de intervenções, sob a presença militar estrangeira, que gerou esse cenário problemático”, diz Márcio Roberto Voigt, professor da disciplina de História das Relações Internacionais da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina).
O professor conta que já no século 19, o Afeganistão sofreu a influência de três guerras envolvendo a Inglaterra. Entre 1979 e 1989, mais uma interferência estrangeira. Desta vez, da União Soviética, que fazia fronteira com o país. O objetivo era apoiar um governo pró-soviético no Afeganistão.
Voigt explica que durante essa intervenção, os Estados Unidos apoiaram guerrilheiros muçulmanos contra a União Soviética. A interferência forte e contínua no país motivou uma reação interna com a formação de grupos muçulmanos de diferentes etnias que tentaram combater essas invasões, sobretudo, entre os anos de 1979 e 1989.
Em 1994, ex-guerrilheiros pashtuns – o maior grupo étnico do Afeganistão-, que participaram da expulsão de forças soviéticas com o apoio dos EUA e do Paquistão, formaram um grupo e o batizaram de Talibã, que na língua pashtun, significa estudante.
Segundo o professor Voigt, o grupo “é o produto interno de uma reação a essa situação de constante interferência estrangeira”.
Regime Talibã 5a294d
Fundado por Mohammad Omar, o grupo extremista prometia restaurar a paz e segurança no país, baseado na instauração da Lei Islâmica. Entre 1996 e 2001 houve uma série de mudanças que afetaram, sobretudo, as mulheres.
Com o grupo fundamentalista no governo, ficou proibida a educação de meninas e o trabalho feminino. Para sair de casa ou viajar, elas precisavam ser acompanhadas por um parente do sexo masculino, e aquelas que eram acusadas de adultério eram apedrejadas.
Após a expulsão da União Soviética, o Afeganistão acabou sendo um refúgio de organizações terroristas, inclusive, da Al-Qaeda de Osama Bin Laden.
Guerra ao terror 5o2e58
Em 11 de setembro de 2001, o atentado terrorista perpetrado pelo grupo Al-Qaeda às torres do World Trade Center, em Nova Iorque, “sacudiu” os Estados Unidos.
Graciela De Conti Pagliari, professora do curso de Relações Internacionais da UFSC, explica que o governo de George W Bush, valendo-se do que chamou de direito de legítima defesa contra o terrorismo, empreende a “guerra ao terror”.
Uma coalizão de países promove uma cruzada contra o terrorismo que mira, inicialmente, no Afeganistão, pois consideraram que o país oferece proteção a guerrilheiros terroristas da Al-Qaeda.
A especialista esclarece que os dois grupos – Talibã e Al-Qaeda – interpretam as leis islâmicas de maneira conservadora e se relacionam de modo próximo. Isso porque ambos se formaram sob o contexto da guerra contra a União Soviética, patrocinados pelos Estados Unidos.
Em poucos meses após o atentado de 11 de setembro, os Estados Unidos fez uma nova intervenção militar no Afeganistão.

“O apoio internacional e a alegação do direito de legítima defesa de agir, portanto, justificaram a intervenção de 20 anos no Afeganistão. Mas o Taliban não deixa de existir ao longo deste tempo, muito embora tenha reduzido seu poder por um determinado período”, afirma a professora.
Retirada das tropas e volta do Talibã 1l21v
As condições para a volta do Talibã ao poder foram dadas em fevereiro de 2020. Nessa data, de acordo com a professora Graciela, o governo de Donalt Trump assinou com o grupo extremista a retirada dos soldados norte-americanos e dos aliados internacionais em um prazo de 14 meses.
“Acorda-se um cessar-fogo e o compromisso de que o território afegão não venha a ser usado para ameaçar a segurança dos EUA e aliados. Contudo, o acordo não foi efetivamente cumprido e mesmo assim os soldados se retiraram do país, desencadeando o caos que se vê nos últimos dias”, expõe a professora.
Vídeos que circularam na internet nesta segunda-feira (16) mostram milhares de afegãos e estrangeiros tentando deixar o país. Nas imagens, eles invadem a pista do aeroporto de Cabul em busca de voos de fuga, cercando e se pendurando em aviões enquanto se movimentam para a decolagem.
Graciela diz que o rápido controle do Talibã na capital Cabul provocou surpresa até em militares dos Estados Unidos, que consideravam que demoraria meses até que isso ocorresse.
O fuzileiro Alexandre Danielli lamenta a tomada do poder pelo grupo fundamentalista. Segundo ele, mesmo com o auxílio prestado ao país e o treinamento do exército e da polícia afegã, o medo do Talibã já está “enraizado” na população, o que a impede de reagir.
O que esperar? u514o
O militar diz ainda não ter certeza de como será o cenário no Afeganistão a partir de agora. O tom mais moderado adotado por líderes do Talibã na mídia pode ser apenas uma forma de disfarçar atitudes radicais fora dos holofotes.
“Pode ser que usem Cabul como uma fachada para mostrar uma forma de governo menos rígida, e no interior do país, continuem com as ações cruéis e com o centro de treinamento de terroristas”, avalia.

As mulheres poderão ser as mais ameaçadas diante deste novo regime. “A Sharia fala que a mulher é para servir o homem. É um objeto inferior a um animal. Vamos ver mais para frente como vai ser. Mas se for como antes, será uma verdadeira catástrofe para os direitos humanos”, prevê Danielli.
A visão do professor Márcio Roberto Voigt também não é muito otimista. Ele argumenta que a tentativa de projetar uma imagem mais moderada pode ter uma dupla intenção.
“Evitar o desespero das pessoas, revoltas e evitar mais confrontos, além de consolidar o novo governo. Se o Talibã assume com um discurso de ampla violência e caça aos representantes do governo anterior cria uma reação imediata de outros países”, conclui.