Quantos autores negros contemporâneos de Santa Catarina você leu ultimamente? Eles são muitos e com vasta produção, tanto em obras acadêmicas quanto literárias. Escrevem sobre África, cultura negra brasileira, educação e transitam com fluidez por poemas, crônicas e prosas.
O ND+ conversou com quatro autores residentes em Florianópolis que mostram a importância do resgate da história do povo negro no Sul do Brasil e, em especial, em Santa Catarina. Confira!

Da capoeira ao mercado editorial 6ze1w
Nascido em Laranjeiras do Sul (PR), o historiador e doutorando em Educação na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), Fábio Garcia, mudou-se ainda criança para Santa Catarina e nunca teve a ambição de tornar-se escritor. Autor de pelo menos 11 títulos, começou a se interessar pela história do negro no Brasil através da capoeira, em 1996.
“Fui provocado a escrever, já que havia uma lacuna sobre esse tema no mercado. E aí descobri que éramos invariavelmente representados como escravizados, incapacitados ou exceção. E não somos exceção, temos muitas personalidades negras importantes que não tiveram o devido destaque”.
Dessa ‘provocação’ surge sua primeira obra, fruto do trabalho de conclusão de curso em História, na UFSC: “Negras Pretensões – A presença de intelectuais, músicos e poetas negros nos jornais de Florianópolis e Tijucas no início do século XX”, lançado em 2007.
Em 2018, Fábio Garcia cria a editora Cruz e Sousa para valorizar autores negros e negras de Santa Catarina e divulgar suas produções. Autores não negros também podem publicar desde que a temática seja afro-brasileira.
“Foi uma forma de propor novas narrativas, saberes e memórias no campo literário sobre a presença negra no Brasil. Nossa meta é ser a maior editora negra do Sul do Brasil nos próximos cinco anos”, afirma.
Uma de suas obras foi finalista do Prêmio Jabuti de 2020. “Ildefonso Juvenal da Silva – Um memorialista negro no sul do Brasil” reúne artigos de Ildefonso Juvenal escritos durante mais de 50 anos, publicados em diversos jornais de Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul, além de uma apresentação da pesquisa feita por Garcia sobre Ildefonso e a cronologia de vida e obra do intelectual.

Agora, Garcia se prepara para lançar mais um título, na próxima terça-feira (29), às 19h, no Museu Histórico de Santa Catarina, no Palácio Cruz e Sousa.
“Gustavo de Lacerda: vida e obra” traz detalhes da vida desse intelectual nascido em Desterro, em 1854, filho de mãe escravizada e que acaba criando a (ABI) Academia Brasileira de Imprensa, em 1908. A obra reflete sobre as relações familiares desse contemporâneo de Cruz e Sousa e um mapeamento da vida literária e jornalística desse cronista brasileiro.
As vivências do Monte Serrat 116h1p
Um estudo antropológico sobre a tradicional comunidade de mulheres negras do Monte Serrat (também conhecido como Morro da Caixa), em Florianópolis, também virou livro pelas mãos de Cauane Gabriel Azevedo Maia, de 39 anos. Paulista, Cauane se mudou ainda criança para Salvador e vive em Florianópolis desde 2008.
“Vozes Negras” (2020) é o primeiro livro da doutoranda em Antropologia Social na UFSC e resultou de sua dissertação de mestrado.
Para realizar o estudo, a pesquisadora foi morar na comunidade, que fica no Centro de Florianópolis, para entender a dinâmica do bairro do ponto de vista das mulheres negras.

“Queria entender principalmente as vivências na localidade do Pastinho, que fica mais perto do cume do morro. As três famílias que vivem ali acabaram casando entre si e formando um núcleo que se distingue dos demais”, explica Cauane.
O estudo revela práticas de afirmação da identidade negra que peram pela religiosidade, pelo samba, pela arte nos muros, pelos saraus poéticos. O livro também aborda a evolução da consciência política local em três momentos distintos.
“As primeiras ocupações revelam as práticas de subsistência das mulheres negras lavadeiras, chefes de família e que trocavam informações sobre oportunidades de trabalho”, aponta.
Na geração seguinte, as filhas de lavadeiras focam na educação e começam a criar espaços de cidadania, como a primeira escola no Monte Serrat, capitaneada por Uda Gonzaga (a dona Uda, que também foi a primeira presidente mulher da escola de samba Copa Lord, sediada na comunidade).
“O terceiro momento é o da profissionalização, com a instalação de fábrica de sabão, peixaria e horta comunitárias, e a partir daí a comunidade começa a tensionar as elites locais, pois há pressão por o a serviços como abastecimento de água e transporte público, por exemplo”, cita a pesquisadora.

A história em versos 52304b
Pode ser que você não goste muito de poesias, mas a história de Adir Pacheco, militar da reserva do Exército de 70 anos de idade, no mínimo instiga a curiosidade. Nascido em Lauro Müller, na Serra Catarinense, em 1952, e residente em Florianópolis desde o ano 2000, começou a escrever aos 15 anos. Atualmente, cursa Direito na universidade.
“A literatura sempre esteve em mim”, diz. Sua inspiração veio de um poema do ex-presidente de Angola, Agostinho Neto. “Li um poema dele em 1965 que me marcou muito, comecei a procurar outras obras dele e ei a escrever”, conta.

Entretanto, seu primeiro livro “Infinito contido” só foi lançado em 2015. “Foi uma dificuldade muito grande, eu me sentia explorado pelas editoras. Então, resolvi segurar a obra e continuei escrevendo”, conta.
A partir do lançamento, entretanto, ele não parou mais e publicou um livro após outro, totalizando 19 publicações até o momento. E já tem outros “no forno”. Uma de suas obras mais icônicas é “Africanidade”, um conjunto de contos e poemas que reverenciam os ancestrais.
O próximo deve sair no primeiro semestre de 2023 com o título “Raízes da África”, o terceiro de uma séria chamada Afro Reflexão. “Neste livro, faço um resgate de grandes culturas africanas”, diz. Ele já definiu até o quarto volume que se chamará “Tambores de Angola”, abordando líderes atuais do africanismo nacional, embora ainda sem data de lançamento prevista.
Músico, poeta, contista e cronista, Pacheco também interpreta poesias em teatros, escolas e “onde for convidado”. Em meio a tantos escritos, ele recorda do poema “Filho Meu”, um recado para o filho adolescente. “Eu morava na Amazônia e meu filho estava em Florianópolis com minha esposa, andava aprontando… o poema funcionou, ele o guardou no bolso por anos e voltou ao ‘rumo certo’”.
Pacheco também é reconhecido fora do Brasil. Foi homenageado com o título de Dr. Honoris Causa em Literatura, pelo Centro Sarmathiano de Altos Estudos Filosóficos e Históricos em 2019, no Rio de Janeiro.
No mesmo ano, recebeu a Comenda da paz Nelson Mandela no grau de Comendador pelo CONINTER ARTES e é membro fundador da ACLA (Academia Catarinense de Letras e Artes) e membro da ADELIT (Academia Desterrense de Literatura – Florianópolis). Foi através do Grupo de Poetas Livres que Pacheco se aprimorou como poeta e escritor, com orientações do poeta Alzemiro Lidio Vieira, falecido em outubro de 2014.
Entre suas obras estão: Voando com as Águias, Infinito Contido, Além do Espelho, Fragmentos d’Alma, Enigmas do Silêncio, Versos Peregrinos e Conselhos da Noite.

‘Sempre quis ser escritora’ 3q166z
Eliane Debus tem uma produção tão vasta e rica que dispensaria apresentações. A professora doutora que sonhava ser escritora hoje está à frente da Secretaria de Cultura, Arte e Esportes da UFSC, e leciona nos programas de Pós-Graduação em Educação e em Estudos da Tradução na mesma universidade.
Nascida na comunidade Novo Horizonte, em Santa Rosa do Sul, no Sul do Estado, ela mudou-se na década de 1980 para ville, onde iniciou seus estudos e formou-se em Letras, em Criciúma.
Tornou-se referência no Brasil quando se trata de literatura para a infância. Além de inúmeras publicações de sua autoria, tem participação em 14 antologias poéticas nacionais e internacionais.

“Comecei a pesquisar sobre literatura na infância em 1988. Nos últimos 15 anos, tenho estudado as questões étnico raciais e produzido obras de cunho literário (poesias e contos) e teórico. Não me vejo fora do mundo da literatura”, diz.
Eliane tem acompanhado a produção de autores negros no mercado editorial para infância e juventude, com foco em todos os leitores. “O que queremos é que essa leitura produzida por negros e com personagens negros como protagonistas chegue a todas as crianças, e que as não negras vejam nossa representação nos livros”, explica.
Detentora de vários prêmios literários e de produção acadêmica, Eliane foi um dos oito nomes agraciados com a Medalha Cruz e Sousa 2022, em cerimônia realizada nessa quinta-feira (24), no Palácio Cruz e Sousa, data de aniversário do poeta simbolista.
“A medalha representa um espaço territorial dessa Santa Catarina plural e vejo como um marco da minha vida como professora e escritora, por ser um reconhecimento estadual. Nesta premiação, éramos [os agraciados com a honraria] na maioria negros e isso nos afeta em termos de afetividade e contato”, avalia.
Confira a produção de Eliane Debus: 2l5k65
Livros teóricos
- Festaria de brincança: a leitura literária na Educação Infantil (DEBUS,2006) Selo Altamente Recomendável da FNLIJ e Bologna Childrens/ Book Fair 2007;
- A literatura infantil e juvenil de língua portuguesa: leituras do Brasil e d´além mar (DEBUS, 2008) Bologna Childrens/ Book Fair 2009.
- Literatura Infantil e juvenil: leituras, análises e reflexões ( DEBUS, DOMINGUES, JULIANO, 2010) – Bologna Childrens/ Book Fair 2011.
- Literatura infantil e juvenil – do literário a outras manifestações estéticas (DEBUS; JULIANO; BORTOLOTTO, 2016) Selo Altamente e Recomendável da FNLIJ), Bologna Childrens/ Book Fair 2017 e Prêmio de melhor livro Teórico de 2016/2017;
- A temática da Cultura africana e afro-brasileira na literatura para crianças e jovens (Cortez, 2017), Bologna Childrens/ Book Fair 2018.
Literatura para Infância:
- O medo e seus segredos
- É tempo de Pão-por-Deus
- Antonieta
- Triolé, Triolé poemas de Cruz e Sousa vamos ler.
Confira outros autores negros e negras de Santa Catarina que você pode pesquisar: