Na rua, penico ou casa do vizinho: 10 mil catarinenses que não têm banheiro vivem no improviso 656r2o

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São mais de 4 mil moradias em Santa Catarina sem banheiro. Em contraste às riquezas de um Estado com economia forte, famílias lidam com situação de precariedade sanitária e ambiental

Em meio a tábuas soltas e apodrecidas, o aposentado Oswaldo Morganti, de 67 anos, se equilibra. Qualquer pisada em falso pode representar um tombo antes de chegar no local que ele utiliza como banheiro.

Não há porta e o vaso sanitário fica em cima da madeira úmida com risco de queda. “Já aconteceu de outro vaso (sanitário) cair lá embaixo das tábuas junto com a sujeira. A gente vai se equilibrando”, diz.

A cena degradante de um ambiente de extrema pobreza pertence a Santa Catarina. E não é exceção. Segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), mais de 4 mil moradias catarinenses não têm banheiro. São cerca de 10 mil pessoas que utilizam espaços improvisados, desde a rua até casas de vizinhos.

Banheiro improvisado de moradores no bairro Frei Damião, em Palhoça – Foto: Marcelo Feble/Reprodução NDTVBanheiro improvisado de moradores no bairro Frei Damião, em Palhoça – Foto: Marcelo Feble/Reprodução NDTV

Priscila, de 22 anos, faz parte dessa estatística. O nome é fictício porque ela tem vergonha de falar sobre a situação.

A jovem mora numa peça única com cama, pia e sofá. Ela depende do sanitário da casa ao lado para fazer as necessidades fisiológicas.

“Se acontece de eu precisar durante a noite, utilizo o penico e descarto na parte da manhã”, diz.

Mãe de duas crianças e responsável pelo sustento do lar, ela espera um serviço de creche para poder trabalhar e juntar dinheiro para construir um banheiro. “Eu não imaginava ar por uma situação dessas”, diz.

Priscila (nome fictício), de 22 anos, vive em peça única com cama, pia e sofá, junto com o filho – Foto: Marcelo Feble/Reprodução NDTVPriscila (nome fictício), de 22 anos, vive em peça única com cama, pia e sofá, junto com o filho – Foto: Marcelo Feble/Reprodução NDTV

Os registros de falta de banheiro estão nas regiões mais pobres de Santa Catarina. Num dos maiores bolsões de pobreza do Estado, o bairro Frei Damião, em Palhoça, um levantamento realizado entre os moradores mapeou 180 casos de famílias que não têm sanitário.

“Construir uma peça para morar custa uns R$ 3 mil. Se tiver banheiro vai custar R$ 6 mil porque banheiro é caro. Então, acontece isso de construir sem”, diz Vladimir Borges Ribeiro, o líder comunitário do bairro, que está em tratativas com a prefeitura e com empresas em busca de recursos para as obras dos moradores.

Moradores em residências sem banheiro utilizam penico - Marcelo Feble/Reprodução NDTV
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Moradores em residências sem banheiro utilizam penico - Marcelo Feble/Reprodução NDTV
No bairro Frei Damião, em Palhoça, levantamento mapeou 180 casos de famílias sem banheiro - Marcelo Feble/Reprodução NDTV
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No bairro Frei Damião, em Palhoça, levantamento mapeou 180 casos de famílias sem banheiro - Marcelo Feble/Reprodução NDTV
Mais de 4 mil moradias catarinenses não têm banheiro, segundo o IBGE - Marcelo Feble/Reprodução NDTV
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Mais de 4 mil moradias catarinenses não têm banheiro, segundo o IBGE - Marcelo Feble/Reprodução NDTV
Em meio a tábuas, morador de 67 anos se equilibra para usar o vaso sanitário - Marcelo Feble/Reprodução NDTV
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Em meio a tábuas, morador de 67 anos se equilibra para usar o vaso sanitário - Marcelo Feble/Reprodução NDTV

O número de moradias que não têm banheiro no Estado representa 0,1% dos 2,5 milhões  de lares catarinenses.

A vergonha de não ter um espaço reservado para fazer as necessidades não deveria se restringir a essa minoria desassistida.

A situação, que representa um dos cúmulos do atentado à dignidade humana, deveria ser vergonha para toda a população de Santa Catarina – que se orgulha de ter uma economia diversificada e um dos maiores PIBs do Brasil, mas não recolhe nem faz o tratamento de 70% do esgoto que produz.

A situação degradante à saúde humana e ao meio ambiente se prolifera por todo o Estado.

Zonas pobres e remotas concentram casos de pessoas sem banheiro 72551z

O perfil da população que não tem banheiro em Santa Catarina é de pessoas que vivem em condições de extrema pobreza.

Além desses casos, há situações de regiões remotas e com pouco o à informação.

Há situações em que são utilizadas as latrinas que ficam em zonas rurais e muitas vezes próximos a cursos d’água para levar os dejetos.

Nesses casos, o esgoto é jogado in natura no meio ambiente e oferece risco a toda a população que consome a água da região, seja encanada ou de poço artesiano.

“Encontramos situações complicadas. Há casos de pessoas que não sabem como usar o banheiro ou então usam para vaso de plantas ou para depósito. Por isso a gente também faz um trabalho educativo”, diz Simone Bottega Marcussi, da Funasa de Santa Catarina.

O banco de dados do IBGE onde estão as informações das pessoas que não têm banheiro indica que mais de mil moradias estão na região da Grande Florianópolis e as outras 3 mil moradias estão distribuídas em municípios das outras regiões do Estado.

Sanitário é peça central do saneamento básico 6o393x

Junto com a rede coletora de esgoto, os banheiros são a peça central do saneamento básico.

Até a metade do século 18, era comum utilizar penico e depois descartar no mato ou na água. Eram tempos sombrios na saúde pública, onde os coliformes fecais proliferavam doenças.

Foi a partir do século 19 que as primeiras redes coletoras de esgoto foram construídas, o que possibilitou que os dejetos assem a ser descartados pelo encanamento, o que representou um salto para a saúde pública.

Com a rede coletora de esgoto, os dejetos deixaram de ser descartados no meio ambiente, o que evita a contaminação do solo e das águas.

A redução de coliformes fecais e agentes contaminadores fez diminuir surtos de diarreia e doenças, o que representou um ganho para a saúde pública.

Fundação Nacional da Saúde tenta reverter situação junto aos municípios

Há 1,6 milhão de moradias no Brasil em que as famílias utilizam métodos rudimentares para fazer as necessidades fisiológicas.

A Funasa (Fundação Nacional de Saúde) trabalha na oferta de editais para os municípios receberem recursos para a construção.

Um dos municípios com maior registro de banheiros recebidos é Lages, na Serra, que implantou o programa Vida Melhor em 2003.

Quando você chegava em um bairro, eram muitos pedidos de banheiro, você não conseguia atender todo mundo”, diz Fernando Becker, que coordenou o projeto até 2012.

Ele estima que cerca de 2 mil famílias foram atendidas no período. “Ainda ficaram muitas famílias desassistidas, até hoje ainda temos. Era uma coisa fundamental, e muito gratificante. Imagina viver sem banheiro em pleno século 21”, diz Becker.

Relato do repórter – Vanessa da Rocha 5r2n6k

Talvez, além da falta de comida, não ter banheiro seja o retrato mais cruel do ataque à dignidade humana. Apesar de alto, o número de pessoas sem sanitário em Santa Catarina já foi maior. O Censo de 2010 apontou 26 mil moradias sem banheiro, o que indica que 22 mil pessoas teriam conseguido o sanitário em uma década. Entretanto, neste mesmo período, a população de Santa Catarina cresceu com a chegada de migrantes de diversos estados que tentam a vida no Estado conhecido pelas suas belezas turísticas e força econômica. No entanto, sem educação nem qualificação profissional, falta dinheiro para morar, o que faz crescer as regiões de pobreza e cria as aberrações sanitárias que é o fato de não ter local para urinar e defecar. No fim, não ter banheiro é o retrato da miséria. É o reflexo de uma nação que não investe em educação e não dá assistência social para uma legião que vive à margem da sociedade. As pessoas sem banheiro escondem o que ninguém quer ver.