Água contaminada por microorganismo tirou visão de moradora de SC 5i2m39

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Mulher perdeu a visão após entrar em contato com tipo de protozoário que corrói a córnea; casos são raros, mas oftalmologistas fazem alerta para cuidados

A gente só dá valor para o saneamento básico quando sente na pele. No caso de Katja, ela sentiu numa das áreas mais sensíveis do corpo humano: nos olhos. Sentiu até parar de sentir.

A visão dela ficou turva de forma gradual. O diagnóstico chegou quando ela já estava cega do olho direito. A contaminação ocorreu por conta da Acanthamoeba, um microorganismo que vive na água e está presente em abundância em locais com problema de saneamento básico. É um tipo de ameba que está no mar, em rios e pode estar até mesmo na água da torneira e do chuveiro.

Katja Plotz Fróis, após a contaminação por microorganismo – Foto: Anderson Coelho/NDKatja Plotz Fróis, após a contaminação por microorganismo – Foto: Anderson Coelho/ND

Katja Plotz Fróis, de 58 anos, mora no Campeche, em Florianópolis e não fazia ideia da existência dessa ameba até abril de 2020. Desde que ficou viúva, ou a dedicar o tempo à própria saúde no tratamento da diabetes.

A arquiteta planejava se dedicar de forma integral ao ofício de escritora assim que operasse a catarata que se desenvolveu no olho esquerdo. “O meu esquerdo só enxergava 3% por causa da retinopatia diabética. Mas o meu direito era perfeito”.

Só que semanas antes da cirurgia, o olho direito  ficou embaçado. “Foi pouco a pouco até que acordei sem enxergar nada. Eu conto de forma quase literária porque é uma história de horrores. Quase que o meu olho caiu do rosto. Teria que usar uma prótese, um olho de vidro”. Ela não sabe onde ocorreu a contaminação, se foi em contato com a água em casa, na piscina ou na praia.

A Acanthamoeba que atacou a visão de Katja é um tipo de protozoário que, assim como bactérias e vírus, está na Terra há milhões de anos e faz parte do equilíbrio ambiental. Só que em contato com seres humanos, esses microorganismos podem causar doenças.

A vulnerabilidade do ambiente é determinante para a contaminação. Nos locais com baixa cobertura de rede coletora, a população está mais vulnerável a patologias.

No caso de Katja, ela também estava vulnerável. Embora esses casos sejam pouco conhecidos no país, estudos estrangeiros mostram que 85% das pessoas que são contaminadas pela Acanthamoeba utilizam lentes de contato.

É um tipo de ameba que encontra nesse  ambiente gelatinoso o espaço ideal para ingressar nas fissuras da córnea e causar infecção. “Falar dessa história me emociona muito. Ainda acredito sinceramente que vou voltar a enxergar. Eu só posso rezar e acreditar que vai acontecer”.

Já são 32 meses tentando reverter a cegueira da vista direita. Nesse período, buscou tratamento em São Paulo e teve o caso estudado por um laboratório norte-americano, que enviou medicamentos.

“Emagreci muito. Cheguei a pesar 44 quilos”, diz. Ela também fez 3 cirurgias na córnea que não deram certo. “Tudo isso por causa de um protozoário que vive na água e as pessoas não têm ideia”.

Relato do repórter 623b5f

Vanessa da Rocha 

A história de Katja me tocou. Ela é uma mulher bela, cheia de vida e força. Me questionei se deveria contar essa história e como contar já que poderia causar alarmismo sobre um tipo de doença que é raro.

Mas essa dúvida ou assim que identifiquei que essa ameba se desenvolve em áreas com saneamento precário. Além disso, a história dela precisa ser conhecida principalmente por promover uma das funções do Jornalismo que é nos colocar em contato com novas realidades.

No caso dela, uma realidade triste de perder a visão, mas que toca e motiva pela força dela de seguir em frente lutando.

Doença relacionada à qualidade da água é pouco conhecida no Brasil 6p2o3p

A doença que tirou a visão de Katja foi classificada como ‘ceratite por Acanthamoeba’. Os primeiros casos foram reportados na Inglaterra e Estados Unidos e no final da década de 1980 no Brasil.

A incidência é de 33 casos por milhão de usuários de lentes de contato. No Brasil, há casos relatados em diversos estados. A doutora em biotecnologia pela Universidade de Caxias do Sul, Janice de Fátima Zanella, pesquisou a Acanthamoeba durante 4 anos.

Ela diz que a ceratite por Acanthamoeba é considerada a mais comum das doenças provocadas por amebas. Mas também há casos de infecções que não são permanentes e em outras áreas do corpo.

Conforme a pesquisadora, esse tipo de ameba é resistente e, além da água contaminada, também pode estar em vários ambientes como partículas do ar e do solo.

“(As pesquisas indicaram que) mais de 50% da população apresenta anticorpos frente à Acanthamoeba, o que indica ser um organismo comum em nosso meio”, diz.

Segundo Zanella, o principal problema nas infecções oculares por Acanthamoeba é o diagnóstico tardio (no caso de Katja foram 4 oftalmologistas que não eram especialistas em córnea que deram diagnósticos errados. Ela teve dificuldade de encontrar profissionais no auge da quarentena da pandemia).

“Na maioria dos casos, o diagnóstico efetuado refere-se à presença de herpes, fungos e bactérias”. Por isso, Zanella recomenda que o assunto seja exposto, principalmente para que a população se proteja enquanto o saneamento não estiver num padrão de segurança.

“A principal forma de evitar é através da educação da população a respeito do perigo de nadar em ambientes com águas que apresentam deficiência no saneamento básico”, diz.

Ceratite causada na visão não está mapeada pela Fundação Nacional da Saúde 335j5v

A Funasa (Fundação Nacional de Saúde) catalogou 22 doenças mais frequentes que estão relacionadas ao saneamento básico precário. Levantamento do Núcleo de Dados e Jornalismo Investigativo (NDI) contabilizou 3.358 internações no último ano por essas enfermidades com 271 registros de morte. Os casos mais frequentes são do trato intestinal.

A oftalmologista Cristina Lunardelli diz que casos de perda de visão por Acanthamoeba são raros e só acontecem quando o diagnóstico é tardio.

“Em 20 anos atendendo no Hospital Celso Ramos não houve nenhum caso de cegueira por esse motivo. Os casos que tratei de Acanthamoeba foi possível reverter”.

Lunardelli, que é membro da Sociedade Brasileira de Lentes de Contato, destaca a importância de alertar para os cuidados de higiene sem causar alarmismo e preocupação excessiva.

Ela diz que atividades cotidianas, assim como a praia e o ingresso no mar, são possíveis para usuários de lentes de contato. “Um surfista, por exemplo, pode entrar no mar de lente, desde que faça a higiene correta da lente com os produtos adequados. Também existem lentes descartáveis para essas situações”, diz.

Entretanto, Lunardelli destaca que é preciso estar sempre atento à higiene da lente e entender que “cada caso é um caso” e que é preciso ter acompanhamento do oftalmologista no processo de adaptação.

“Muitas pessoas precisam da lente para enxergar e viver. Não é comprar na farmácia e pronto. É necessário ter acompanhamento profissional”, diz.

O que são protozoários 27j2z

São micróbios invisíveis a olho nu e de estrutura unicelular. Habitam espaços úmidos, geralmente aquáticos. Se alimentam de matéria orgânica, bactérias e até mesmo de outros protozoários.