O caso de denúncia de estupro envolvendo o jogador da seleção brasileira Daniel Alves ganha novos desdobramentos todos os dias. Ele está sendo acusado de estuprar e agredir sexualmente uma mulher de 23 anos em uma boate na Espanha e está preso preventivamente desde o dia 20 de janeiro.
A justiça espanhola tem agido de forma célere para investigar o caso: após realizar exames, a vítima prestou queixa no dia 2 de janeiro e, apenas 18 dias depois, a juíza decidiu pela prisão preventiva do jogador sem direito à fiança.
A celeridade ocorreu porque a província da Catalunha, onde o estupro teria acontecido, tem protocolos rígidos para casos de abuso sexual contra mulheres. Mas e no Brasil, porque esse tipo de crime ainda demora a ser solucionado?

Quando a justiça protege a vítima 87239
Entrou em vigor em 2022 na Espanha a Lei da Garantia Integral da Liberdade Sexual, também conhecida como lei “Só o sim é sim”. A proposta teve origem no caso “La Manada”, um estupro coletivo de uma jovem de 16 anos que ocorreu em 2016.
O texto prevê que é necessário o consentimento antes de qualquer interação sexual. Se não houver o “sim”, o caso é considerado agressão e deve ser punido de acordo com as circunstâncias e agravantes. Assim, uma violência sexual não necessariamente implica uso de força.
Essa é a principal diferença de legislação entre Brasil e Espanha. De acordo a advogada feminista Daniela Félix, há um grave problema no tipo penal de estupro.
O Código Penal Brasileiro considera agressão “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”, desconsiderando a ausência de consentimento da vítima.
“Todas as instituições que compõem a justiça criminal seguem reproduzindo a compreensão de que para se configurar estupro, há que se provar a violência física e o perigo real dela, descartando da análise o momento em que a vítima diz NÃO”, explica.
Outros aspectos são semelhantes nos dois países, já que ambos integram as declarações, tratados e acordos de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas), que preveem o combate à violência contra a mulher.
“Trechos da decisão da juíza que decretou prisão preventiva, por exemplo, fundamentam-se na palavra da vítima, que se utilizou dos protocolos legais de acolhimento a mulheres vítimas de violência sexual. No Brasil também há legislação correlata nesse sentido”, comenta a advogada.
A prisão preventiva ocorreu porque a juíza entendeu que o jogador teria meios financeiros para sair do país, além de ter apontado contradições no depoimento. De acordo com a justiça espanhola, Daniel pode permanecer preso preventivamente por dois anos até o julgamento.
Daniela também lembra que o Brasil possui protocolos de acolhimento às vítimas de violência sexual, inclusive no SUS (Sistema Único de Saúde), mas na Espanha a lei prevê até auxílio financeiro e o prioritário à habitação para as vítimas.
Outros pontos de destaque na legislação espanhola são a criação de centros de crise 24 horas, onde vítimas e pessoas próximas podem buscar ajuda psicológica, jurídica e social. Na Espanha a educação sexual também se torna obrigatória para os agressores.
Dupla vitimização 2x442q
Para a doutoranda em Antropologia Social pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) Bruna Fani Duarte Rocha, a mulher ainda não é vista como um sujeito de direitos no Brasil e isso implica no descrédito das vítimas de abuso sexual.
“A deslegitimação sobre a mulher é tão grande ao longo da história, que a transformou perante a sociedade em uma ‘louca em potencial’. Essa construção violenta fez com que a palavra da mulher fosse algo ível de ser questionado até hoje”, argumenta.
Ela acredita que isso ainda ocorre em delegacias, por exemplo, que deveriam ser locais seguros e acolhedores para a denúncia de crimes sexuais.
Daniela concorda e ainda ressalta que a vítima a por novas violências quando procede a queixa. “Na criminologia, chamamos isso de dupla vitimização, que são os pré-julgamentos sobre a veracidade do depoimento, que questionam a roupa que a vítima estava usando, porque estava sozinha, e aí por diante. O impacto disso é o total descrédito das vítimas e a demora na solução do problema”, acrescenta.
A advogada ressalta que muitas vezes isso ocorre porque os crimes são cometidos em espaços privados, apenas na presença do agressor e da vítima, sem testemunhas. Aliado a isso, há situações que não deixam vestígios, dificultando a produção de provas.
Essa postura patriarcal ainda impacta os argumentos utilizados pela defesa dos agressores. A antropóloga coloca como exemplo o caso Mari Ferrer, em que o advogado utilizou imagens de redes sociais da vítima para descredibilizar a violação sobre seu corpo.
“É como se sempre houvesse uma justificativa para o abuso, que sabemos, é totalmente equivocada. Dentro dos estereótipos de gênero, as mulheres, em tese, precisam ser conservadoras sobre seus corpos, seus modos de vida para que não sejam violentadas” explica.
A falta de acolhimento às vítimas no momento da denúncia evidencia, segundo Bruna e a inferiorização das mulheres na sociedade acabam desencorajando a queixa de crimes de abuso ou agressão sexual.
“São os únicos crimes que a vítima precisa provar inocência. Primeiro ela tem a violação sobre o seu corpo e a sua dignidade e, depois, a dúvida sobre a denúncia, a violação sobre sua palavra e moral perante a sociedade”, complementa a antropóloga.
Há como mudar o sistema? 2vyg
Para a advogada Daniela, é possível sim, com apoio dos movimentos feministas, atendendo às demandas das mulheres como forma de construção de uma sociedade mais justa, empática e solidária.
“O primeiro o é o aprimoramento da Lei Penal, com vista a contemplar as pautas e agendas feministas, que apontam os equívocos e o machismo estrutural e estruturante do sistema de justiça”, elenca.
Depois, ainda é preciso, segundo a advogada, melhorar as condições e estruturas das redes de acolhimento e delegacias especializadas, além da formação contínua de profissionais, permeada por uma cultura de empatia às vítimas.
Por fim, seguindo o exemplo da Espanha, as especialistas apontam a necessidade de uma maior rigidez na resolução de casos envolvendo violência sexual contra a mulher, para evitar que a impunidade desencoraje vítimas à denunciar crimes. “Com o abusador solto, não há segurança”, finaliza Bruna.