Os açorianos que ocuparam o litoral sul-brasileiro a partir de meados do século 18 deixaram grande legado na região, mas em relação à arquitetura a herança não vem exatamente do arquipélago. Historiadores, arquitetos e urbanistas entram em consenso quando falam do assunto – o que se vê nos casarios, igrejas, edifícios públicos e na configuração dos centros urbanos tem como gênese a tradição construtiva de Portugal continental.
Por isso, esses especialistas chamam de arquitetura de características luso-brasileiras o estilo trazido pelos emigrantes. Ele está presente em todo o território brasileiro, inclusive em lugares que não receberam açorianos.

A primeira peculiaridade está no material usado – nos Açores, a pedra basáltica de origem vulcânica era o insumo básico das construções, pela abundância e pelas facilidades que proporcionava em termos de acabamento, dispensando, muitas vezes, o reboco ou a caiação. Aqui, a madeira e a pedra, também pródigas em oferta, predominaram como matéria-prima. No mais, é notório que os moradores do arquipélago reproduziram os modelos trazidos do continente português, sobretudo das regiões do Alentejo, Algarve e Extremadura, principais origens dos povoadores das ilhas.
O arquipélago também sofreu influências das culturas normanda, bretã e inglesa na sua formação étnica e cultural, mas elas não foram significativas a ponto de deixar rastros na arquitetura. “Nos Açores, usavam-se muros baixos de pedra, para melhor aproveitamento do terreno, sendo que a utilização das chaminés era comum nas residências”, diz Suzane Albers Araújo, arquiteta e urbanista aposentada do Ipuf (Instituto do Planejamento Urbano de Florianópolis).
“No princípio, as casas luso-brasileiras do período colonial podiam ser térreas ou sobrados, e estavam dispostas em lotes estreitos e profundos, onde as fachadas frontais conformavam as ruas das vilas ou núcleos urbanos, já que as edificações eram construídas sobre os limites laterais do terreno umas junto às outras, de forma geminada”, conta Suzane.

“Tinham cobertura em duas águas, com caimento de frente para a rua e nos fundos para o quintal, evitando a necessidade de uso de sistema de captação ou condução de águas pluviais. No caso das casas térreas, a distribuição interna se dava por uma sala frontal, seguida das alcovas (que eram cômodos fechados, sem janelas) e nos fundos a cozinha, sendo a circulação realizada por corredor lateral ou central”.
Estilo uniforme de Norte a Sul do Brasil
Em Florianópolis, há igrejas antigas, capelas e Impérios do Divino que remetem, de forma bastante simplificada, à composição plástica destas unidades presentes nos Açores. Contudo, esses exemplares são similares aos encontrados em todo o litoral brasileiro. “Existe uma uniformidade visível do Norte ao Sul do Brasil, havendo ou não descendentes de açorianos em cada lugar”, afirma o arquiteto, urbanista e mestre em história, Fabiano Teixeira dos Santos.
Fossem populares, acadêmicos ou eruditos, os elementos se reportam à raiz portuguesa. Para Fabiano, o mesmo equívoco de atribuir apenas aos açorianos esse legado se dá em relação à pesca, à gastronomia e ao culto do Divino Espírito Santo.

Além do uso de pedra basáltica, uma das características marcantes das casas açorianas é possuir apenas um piso e ter aberturas pequenas para que a claridade entre sem que seja demasiada no verão. Pelo material de que são constituídas, garantem proteção nos meses frios e frescor razoável no calor.
A porta principal da construção está sempre acima do nível da rua. Tradicionalmente, em especial nas zonas rurais, o piso era de chão batido, à exceção do quarto, forrado de madeira. A cozinha, lá e aqui, era sempre a parte com o telhado mais baixo, como se vê em antigos exemplares remanescentes no interior da Ilha de Santa Catarina.
Em outras palavras, as residências predominantes nos Açores não surpreendem pela grandiosidade, e chama a atenção dos visitantes das ilhas que não existem edifícios como ao longo de toda a orla brasileira. O que mais sobressai nas paisagens rurais e urbanas são as igrejas, que não têm a riqueza que se observa na Europa continental e nas cidades de Minas Gerais, por exemplo, onde havia ouro e a necessidade de impor a fé pela suntuosidade dos edifícios religiosos.
Nas últimas décadas, muitas mansões foram erguidas no arquipélago por açorianos ou descendentes que enriqueceram nos Estados Unidos e no Canadá, para onde emigraram a partir de meados do século 20.
Arquiteta mostra detalhes de velhas edificações
Ainda que a interferência portuguesa na paisagem da Ilha de Santa Catarina tivesse começado bem antes, adquiriu relevância com a execução do plano estratégico que contemplou a construção do sistema de defesa da região (fortalezas), a partir de 1739, sob o comando do brigadeiro José da Silva Paes, acompanhado de outro sistema composto por núcleos de assentamento.
Esse planejamento da ocupação colonial, presente em todo o Brasil, foi o que os casais açorianos receberam quando aqui chegaram, entre 1748 e 1756. A partir daí, a vila de Nossa Senhora do Desterro mudou sua configuração espacial e estética. Na arquitetura, os emigrantes precisaram atender ao planejamento existente e se adaptar ao relevo e aos materiais disponíveis na nova terra.

Numa visita a Santo Antônio de Lisboa, com a reportagem do ND, a arquiteta e urbanista Suzane Albers Araújo mostra edificações térreas de características luso-brasileiras, com suas fachadas, coberturas, aberturas, ornamentos e o interior de residências (algumas com outra destinação hoje, como no caso da Casa Açoriana, que comercializa artesanato).
“As edificações mais antigas são aquelas que apresentam aberturas com vergas retas e janelas de abrir em duas folhas, também chamadas de escuras ou postigos, sem a presença de esquadrias de vidro”, diz ela. “Como exemplo, temos a antiga Casa do Vigário na Lagoa da Conceição. Em Santo Antônio há uma edificação de esquina que tem a verga reta, com postigo interno e esquadria de vidro sobreposto a ele, de um período posterior quando o vidro se impôs como elemento essencial para dar claridade aos ambientes internos. Também há edificações com verga em arco abatido e janela em guilhotina sobreposta ao postigo interno em duas folhas. Outra derivação da verga é a em arco pleno”.
Suzane detalha ainda mais as características dessas edificações: “Os telhados com telhas capa e canal apresentam um caimento frontal atenuado por galbo, que se obtém pelo uso de uma peça de madeira, chamada contrafeito. A ligação da cobertura com a fachada se dá pela beira seveira ou por cimalha, sendo a fachada composta por cunhais laterais, vãos ritmados com enquadramentos em madeira (as mais antigas) ou requadros em massa.
A cantaria, uma pedra cinza que vinha como lastro dos navios, também era usada como requadro dos vãos – uma raridade na Ilha de Santa Catarina, presente por exemplo na Igreja Nossa Senhora das Necessidades, em Santo Antônio. Outro elemento ornamental bastante raro por aqui era o uso de azulejos na fachada. No Centro de Florianópolis e nos núcleos do interior da Ilha, as edificações eram geminadas, construídas junto por razões de segurança”.
As influências nas igrejas, engenhos e impérios do Divino
A igreja de Nossa Senhora das Necessidades foi construída seguindo o modelo da antiga Igreja Matriz (atual Catedral Metropolitana), de autoria do brigadeiro José da Silva Paes, composta por nave única, sacristia e capela laterais. Externamente apresenta linhas singelas, com a fachada frontal ostentando uma portada principal com requadro em cantaria e óculo, encimado pelo frontão. Lateralmente apresenta uma torre sineira, com o espaço frontal delimitado pelo adro murado e rendilhado.
A arquitetura luso-brasileira presente em Santa Catarina – numa extensão que vai de Laguna e São Francisco do Sul – contempla ainda os cruzeiros (cruzes colocadas sobre pedra ou madeira na parte externa das igrejas) e os impérios do Divino. Na Ilha de Santa Catarina, há duas das três tipologias arquitetônicas de impérios existentes nos Açores, que é o Império-capela e o Teatro do Divino. Formalmente o império é semelhante às pequenas capelas, com frontão triangular e planta retangular. O Teatro do Divino possui planta quadrada, cobertura em quatro águas e o frontal.
Os exemplares são os impérios na Igrejinha da UFSC, no Ribeirão da Ilha, na Lagoa da Conceição e no Campeche. O único remanescente do Teatro do Divino fica defronte à igreja da Lagoa da Conceição. Nos Açores, eles têm vertente pagã, assim como as festas do Divino Espírito Santo. Aqui estão vinculados às paróquias católicas.
A influência construtiva dos emigrantes também se manifesta nos engenhos de farinha, açúcar e cachaça, cada vez menos numerosos. Situam-se junto a uma edificação principal, com arquitetura bastante simples e o uso de materiais perecíveis, pouco resistentes e rudimentares, sem preocupação com a beleza e sim com a funcionalidade. Eram movidos à tração animal ou por rodas de água.
Os fornos de pão dos Açores não se repetiram aqui porque o trigo não vinga em áreas quentes e úmidas como o litoral brasileiro. E as armações baleeiras, que exigiam logística construtiva específica para o preparo do óleo da baleia, também deixaram vestígios em formas de ruínas, na Ilha de Santa Catarina e nos municípios próximos.
Tombamentos preservaram conjuntos importantes
Na capital catarinense, apesar do acelerado processo de expansão urbana ocorrido na área central e nos núcleos do interior da Ilha, houve a preservação de conjuntos históricos importantes, na década de 1980. “Florianópolis foi o primeiro município catarinense que tombou conjuntos urbanos. Também incluiu na sua legislação as Áreas de Preservação Cultural garantindo que o legado que chegou a nós fosse preservado para as gerações futuras”, diz a arquiteta Suzane Albers Araújo.
Entre os conjuntos tombados estão os do Centro Histórico, Menino Deus (incluindo o Hospital de Caridade), praça Getúlio Vargas (até a rua Victor Konder), antigo bairro da Tronqueira, rua General Bittencourt, rua Hermann Blumenau, igreja de Nossa Senhora do Rosário, praia de Fora (rua Esteves Junior), Rita Maria (fábrica de bordados e armazéns) e rua Bocaiuva.
Pela legislação urbana também foram protegidos os núcleos do Ribeirão da Ilha, Santo Antônio de Lisboa e Lagoa da Conceição, tombados em âmbito federal em 2016, além de uma pequena área junto à igreja de Canasvieiras.