– Dadinho é o ca…, meu nome agora é Zé Pequeno.
É quase impossível alguém não ter ouvido essa marcante frase alguma vez na vida. O motivo para tal, é que ela vem de um dos filmes de maior destaque na história do cinema brasileiro, “Cidade de Deus”
A obra, que é baseada em livro homônimo de Paulo Lins, comemora 20 anos de sua estreia oficial no país nesta terça-feira (30), sendo aclamada tanto por crítica quanto por público.

Com essa data, nada mais justo do que abordar esse impactante filme que influenciou muito a cinematografia internacional e está presente até os dias de hoje no imaginário cultural do Brasil.
Uma mudança de perspectiva 5m4m5w
É bem difícil imaginar “Cidade de Deus” sem pensar na atuação icônica de Leandro Firmino no papel de Dadinho, ou melhor… Zé Pequeno. Em entrevista exclusiva oferecida ao portal ND+, o ator garante: “Mudou minha vida”.
Conforme o ator, ele nunca havia sequer imaginado, antes deste filme, em trabalhar na atuação. “Na escola tinha a matéria de artes cênicas, mas eu não curtia muito não”, relembra.

Sua chance de mostrar seu talento apareceu apenas quando os diretores do filme Fernando Meirelles e Kátia Lund foram nas comunidades do Rio de Janeiro para procurar jovens que tinham experiência com teatro quanto aqueles que não tinham.
Rindo, Firmino relata que nem sabia exatamente do que se tratava o projeto na hora, e que haviam contado para ele que era uma novela. Quando, na verdade, mal sabia que seria um dos projetos que mudaria suas perspectivas de vida.
Ao explicar como foi o processo até chegar ao papel de Zé Pequeno, Leandro diz que no teve que falar um pouco sobre sua vida durante o teste. Seguido de três meses de oficina de atuação.
Mas só foi um ano depois disso tudo que ele foi chamado para participar de “Cidade de Deus”. “Eu não tinha nenhuma pretensão em trabalhar com arte e de repente a coisa virou”.

Na etapa seguinte: a gravação do filme. O processo não foi nada fácil, segundo o ator. Nele, a preparadora de elenco Fátima Toledo buscou trabalhar com sentimentos e emoções do próprio Leandro para construir o personagem. “Em nenhum momento ela copiou o Zé Pequeno do livro”, lembra.
Assim, ele foi construído com emoções e sentimentos do próprio Firmino. O resultado foi uma indicação de melhor atuação ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro e a pavimentação de uma carreira inteira para o ator de 44 anos.
A pós-retomada do cinema brasileiro 466g6b
Segundo a professora de Cinema do Curso de Cinema da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), Patrícia Iuva, o filme de 2002 marca o início da pós-retomada do cinema no Brasil.
“A gente tem um apagão do cinema brasileiro no governo Collor”, afirma Iuva. A afirmação toma como base algumas medidas do então presidente, Fernando Collor de Mello, que prejudicaram a produção de filmes, a partir do início de seu mandato em 1990.

No seu primeiro ano de governo, por exemplo, Collor fechou a Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes), em nome de uma austeridade que prometia. A estatal foi responsável pela produção e distribuição de filmes nacionais no mercado. Entre eles, obras clássicas, como: “Dona Flor e Seus Dois Maridos” (1978), “Pixote – A Lei do Mais Fraco” (1981) e “O Beijo da Mulher Aranha” (1985).
O resultado foi a quase inexistência de filmes brasileiros nesse período. Para ter ideia, em 1992 apenas um filme brasileiro de longa metragem estreou no mercado.
Com o fim do governo Collor e a eleição de Fernando Henrique Cardoso, uma série de incentivos e leis de captação de recursos foram incentivadas no Brasil como forma de viabilizar o cinema novamente.
Das medidas pode-se citar a criação do Fundo Nacional de Cultura, da Ancine (Agência Nacional de Cinema) e a Lei da Contribuição Financeira para o Desenvolvimento Cinematográfico.

Assim, inicia-se o chamado “Cinema de Retomada”, com um maior ritmo de produções e parcerias com grandes empresas. Marcam essa época filmes como “Carlota Joaquina” (1995); “O que é isso, Companheiro?” (1997), que foi inclusive indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro; e “Central do Brasil” (1998), também indicado ao Oscar de Filme Estrangeiro e Melhor Atriz, com a nomeação de Fernanda Montenegro.

A professora de cinema categoriza Cidade de Deus, como uma etapa posterior a esses filmes, colocando o filme dirigido por Fernando Meirelles e Kátia Lund como um cinema de pós-retomada, onde produções como “Tropa de Elite” (2007) e “Carandiru” (2003) também se encontram.
Nesse sentido, Iuva caracteriza alguns dos filmes dessa fase como algo mais próximo dos padrões narrativos e estéticos de Hollywood.
“Cidade de Deus é uma marca por ser um filme que vai tentar tratar questões sociais e políticas, mas também tem um apelo comercial e é um produto de entretenimento”, explica.
Com isso o filme conseguiu se vender facilmente no Brasil e no mundo, não só sendo aclamado pela crítica, como também pelo público. No agregador de notas Rotten Tomatoes, por exemplo, o filme pontua 91% de aprovação com a crítica e 97% com o público.
Além disso, foi reconhecido pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas com quatro indicações ao Oscar: Direção, Roteiro Adaptado, Fotografia e Edição.
Um roteiro hollywodiano para falar do Brasil 1l2o3j
Tal como a professora de Cinema, Fernando Biscalchin também concorda com a ideia de como o filme se aproxima dos moldes de storytelling (o contar da história) de filmes de Hollywood. Biscalchin é diretor, roteirista e autor do livro “Dadinho é o ca…!: o processo de criação dos roteiros ‘Cidade de Deus’ e ‘Tropa de elite 2’ de Bráulio Mantovani”.
Para o autor a grande marca dos roteiros de Bráulio são os personagens, que ganham vida na mão do roteirista e trazem para a tela frases icônicas, como: “Dadinho, é o ca…”, de “Cidade de Deus”, ou, “Vai subir ninguém”, do Capitão Nascimento, em “Tropa de Elite”.

Mesmo com as ditas características e o ritmo do filme, ele não deixou de contar uma realidade brasileira com as camadas e teor de realidade necessários. “A gente já falava de ditadura e pobreza nos filmes. Mas nada que fosse tão profundo e tão adentro quanto foi ‘Cidade de Deus’. Ele quis adentrar a esse local que existe no nosso país”, afirma o autor.
O “adentrar”, dito por Biscalchin, não é só figurativo. Isso porque as filmagens da obra se deu dentro de comunidades em diversos momentos, segundo relata o ator Leandro Firmino. “Ter gravado dentro de algumas comunidades foi importantíssimo. Por isso as pessoas quando assistem cidade de deus acham ele realista”, conta Firmino.
Um filme necessário 141p6f
A primeira vez que Patrícia Iuva viu o filme foi quando ainda estava entrando na graduação de publicidade na UFSM (Universidade Federal de Santa Maria).
A descrição que a professora dos aspectos que a impactaram na primeira vez que sentou para assistir “Cidade de Deus” ficam na parte mais estética do filme. “Nem foi tanto a história que me impactou, mas a questão técnica: a qualidade de fotografia, os movimentos de câmera e o visual”.
No entanto, a narrativa não fica fora dessa, Iuva explica que chamou atenção dela ser um filme com uma história bem dinâmica e ritmo acelerado. Todos esses aspectos fazem da obra “um filme necessário”, segundo a docente de Cinema da UFSC.
Com isso, o filme foi uma forma do Brasil mostrar para o mundo o nível em que as produções nacionais podem chegar quando bem desenvolvidas. No entanto, o potencial desperdiçado de fazer mais produções nacionais grandiosas, como “Cidade de Deus” é algo que os entrevistados ressaltam.

“‘Cidade de Deus’ mostra que a gente consegue produzir um cinema de qualidade, mas a gente precisa que nosso investimento não pare”, afirma Iuva.
Já o eterno Zé Pequeno, fala que apesar de vários filmes brasileiros bons terem saído depois do título de Fernando Meirelles, o país não chegou ao seu verdadeiro potencial. “O Brasil é rico e tem muita história para contar. A gente poderia ser uma grande indústria e colocar todo mundo para assistir nossos filmes”, conclui Firmino.
Devido a questões de agenda, o diretor do filme, Fernando Meirelles, não conseguiu falar com a ND+ para falar sobre o aniversário do título. Kátia Lund, co-diretora, chegou a mostrar interesse na reportagem, mas não deu encaminhamento à entrevista.