Ao descobrir que a gravidez de gêmeas era de risco, a funcionária pública Ana Beatriz Leal de Mello, 38 anos, precisou se afastar do trabalho na recepção da emergência do Hospital Infantil Joana de Gusmão, em Florianópolis. Desde maio de 2020, além do medo da contaminação pelo coronavírus, ela encara uma rotina de responsabilidades que se intensificou com o isolamento domiciliar.

Após cinco meses do nascimento de Liz e Helena, Ana se desdobra para cuidar da filha Sofia, de 11 anos, e da casa que divide com o marido, Dênis. Mesmo assim, ela ainda se culpa por “não fazer o bastante”. “Às vezes estou pronta para dormir e penso que poderia ter ajudado mais minha filha a estudar ou ter limpado a casa.”
A culpa e a “mãe possível” 44y6
De acordo com informações levantadas pelo IEG (Instituto de Estudos de Gênero) da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), pesquisas internacionais apontam que, durante a pandemia, as mães assumiram pelo menos 50% a mais dos cuidados das crianças em comparação aos pais. Então, se elas estão fazendo mais durante esse período, por que a culpa?

A psicoterapeuta e doutora em psicologia pela UnB (Universidade de Brasília), Vanessa Cardoso, aponta que esse sentimento vem da cobrança de alcançar a excelência em todas as áreas da vida.
“Na nossa sociedade, a performance voltada para maternidade e casamento gera infinita culpa, independente da pandemia.” Dessa forma, “se não estou performando bem, não sou uma boa pessoa”, explica a psicóloga.
Assim, a autoestima das mulheres, especialmente das mães, é afetada pelos julgamentos sociais e a falsa necessidade de precisar “fazer tudo”.
Para aliviar essa sensação de impotência, a psicoterapeuta defende que é preciso diminuir o grau de exigência. “Entre a mãe ideal e a mãe real, existe a mãe possível. É importante a própria mulher reconhecer que não vai dar conta de tudo.”
Jornada tripla na pandemia 2y2w
Apenas dez dias após o parto de Luke, em janeiro de 2021, a analista de conteúdo Adriana Sartori, 33 anos, moradora de Florianópolis, voltou a fazer os trabalhos como freelancer para complementar a renda. A jornada tripla – cuidar da casa, dos filhos e do trabalho – nunca parou, mas o ritmo de exigência se tornou contínuo.
Ao contrário de Ana, Adriana não se culpa por “não fazer o suficiente”. Na verdade, ela ite que está fazendo demais. “Eu estou bem sobrecarregada, principalmente depois que o Luke nasceu. Parece que até fazer xixi é algo que você precisa agendar, porque nem sempre você consegue”, explica, às gargalhadas.
Antes do isolamento, ela e o marido Igor trabalhavam de forma presencial, mas agora somente ele vai ao escritório. “Às vezes queria só acordar de manhã e sair para trabalhar. Alguém para ar o dia todo em casa com o bebê, e quando eu voltasse estaria tudo pronto”, idealiza Adriana.
O marido, que atua como designer, sai para trabalhar quando Luke acorda e retorna após o bebê ter dormido. “Queria voltar nessa hora”, brinca.
A pesquisa “Sem Parar – o trabalho e a vida das mulheres na pandemia” de 2020, organizada pela Gênero e Número e a SOF (Semprevida Organização Feminista), apontou que 41% das mulheres que seguiram trabalhando durante a pandemia – com manutenção de salário – afirmaram trabalhar mais na quarentena.

“A maior parcela delas é branca, urbana, concluiu o nível superior e está na faixa dos 30 anos. Uma camada privilegiada, sem dúvida. Mas a crise sanitária sacudiu as estruturas em todas as casas de mulheres trabalhadoras”, ressalta o estudo.
A importância da rede de apoio 2ikb
Morando em uma casa ao lado dos pais, a jovem mãe Camila Maria de Souto, 22 anos, também da Capital catarinense, detalha a importância de tê-los presentes. “Graças a Deus eu tenho eles, não conseguiria sair para resolver algum problema, se não tivesse eles.” Solteira, ela cuida da pequena Maria, de 3 anos.
Atualmente, Camila está desempregada, mas realiza alguns trabalhos pontuais como freelancer em diferentes áreas. “Se eu tivesse que sair para trabalhar, eu teria com quem deixá-la”, ressalta. Na pandemia, ela precisou recorrer ao auxílio emergencial do governo federal.

Já com o risco da Covid-19, os familiares de Ana e Dênis, do início da reportagem, que são idosos, não puderam contribuir com os cuidados das meninas. Assim, o que já era difícil, ficou ainda mais, porque ela não contou com a ajuda da mãe e das tias.
“Vivo em casa e 100% para elas, sem ver ninguém, sem sair. Quando está tudo normal, visitava avó, tia, ia à pracinha. Hoje eu não faço isso, o máximo é ir à sacada”, reitera Ana. “Evito que as pessoas venham aqui, tenham contato. Batizado não sei ainda se vou fazer.”

A psicoterapeuta Vanessa Cardoso destaca a importância da rede social de apoio. “É extremamente importante para que a mulher sinta que seus aspectos operacionais estão sendo atendidos. Essa rede faz os cuidados istrativos, mas infelizmente, com a pandemia, as mães viveram meses se sobrecarregando”, afirma.
Situação semelhante é enfrentada por Adriana. Os sogros moram na Capital catarinense, mas são idosos. Assim, evitam sair de casa. Além disso, o marido Igor vai ao trabalho de ônibus todos os dias, o que aumenta o risco de exposição e contágio pelo vírus.
“Não poder estar com amigos e familiares é uma das partes mais difíceis. Ficamos muito isolados e sozinhos”, desabafa a analista de conteúdo.
No entanto, ela ainda consegue perceber alguns benefícios. “Em certos aspectos, o isolamento foi muito bom, os palpiteiros sumiram, evitamos de ouvir certas coisas.” Para as tarefas domésticas, Adriana conta com uma diarista, que vai à casa uma vez por semana.
Crianças e aulas on-line 5b191g
As aulas on-line foram desafiadoras tanto na casa de Ana quanto de Adriana, que também é mãe de Gael, de 8 anos. “Ele teve dificuldade de se adaptar, era uma briga para ele fazer as aulas”, relata.
“Às vezes ele tinha rompantes: ‘eu odeio isso, eu não quero mais ir para a escola’, quando assistia às aulas on-line”. Para resolver o problema, ele começou a ir à terapia, cujos efeitos puderam ser sentidos. “Ele está muito mais calmo.”
Já a filha mais velha de Ana tinha acabado de mudar de escola quando a pandemia foi anunciada. “Foi bem complicado. Mesmo grávida conseguia auxiliar, mas quando os bebês nasceram ficou ainda mais complicado.”
Ela diz que Sofia, aos 11 anos, “não retém conhecimento do mesmo jeito que seria em uma sala de aula”, mas mesmo que existisse essa opção em 2020, ela não teria deixado a menina ir à escola. “Muito perigoso, principalmente comigo em uma gravidez de risco”, aponta.
A sensação de “cobrança” aparece em Adriana quando ela fala da educação de Gael. “Faço questão de estar junto dele, fico muito em cima, até não deixo o Igor participar tanto”, revela.
Segundo o levantamento do IEG da UFSC, as mães também assumiram entre 10% e 30% a mais das atividades escolares virtuais em comparação com os pais.
No caso de Sofia e Gael, ambos estão no sistema híbrido de ensino, ou seja, em uma semana assistem a aulas remotas, e na outra participam das atividades presenciais.
Isolamento e perda do autocuidado 5x2g1j
“A perda da subjetividade é grande. Eu não me arrumo, eu não faço nada [para mim]. Não estou me cobrando, mas estou me sentindo feia, acabada”, conta Adriana. “Hoje fui descer para levar o Gael no transporte e eu desci de pijama. Me dá um pouco de vergonha, mas o o dia todo em casa, a minha rotina é essa”, acrescenta.
Camila alerta para a dependência que a pandemia pode causar nas crianças. “Pouquíssimas vezes consigo tirar um tempo para mim. Quando tiro a sobrancelha ela está junto, quando resolvo me maquiar ela está junto, e ainda preciso ar a maquiagem nela!”, comenta, rindo.
Por conta disso, a autônoma pondera entre a necessidade de ficar sozinha e com a filha. “Ás vezes, pode ser muito estressante pelas 24 horas que amos juntas, mas por outro lado é muito bom estar com ela”. Ela conta que Maria a acompanha até para ir ao banheiro.
Com as gêmeas recém-nascidas, Ana também não tem tempo sobrando. “Tomar banho é quando dá, cabelo nunca mais fiz. Vivo em função de mamadeira e fralda”. Ela comenta que dizem que quando as crianças dormem, a mãe também deveria dormir, mas não é bem assim. “Quando elas dormem, eu vou fazer as coisas da casa, cozinhar, limpar.”
A psicoterapeuta Vanessa Cardoso afirma que é importante aceitar quando as mães estão exaustas. “Há espaço para descanso. Somos humanas, é preciso lidar com essa vulnerabilidade para se conectar melhor com os filhos”.
Divisão de tarefas com os parceiros 644n29
Na casa de Adriana e Igor, o casal dialoga sobre os papéis que precisam desempenhar, tanto na criação dos filhos quanto na organização da casa.
“A gente sabe que eu faço muito mais no meu dia a dia, mas não dá para cair nessa conversa que é inevitável. Só eu preciso botar ele para dormir? Conversamos para encontrar um equilíbrio das nossas responsabilidades”, destaca. Adriana pretende contratar uma babá quando retornar da licença maternidade.
Um estudo feito pela Febraban (Federação Brasileira de Bancos) em julho de 2020 apontou que, entre os responsáveis pelas tarefas domésticas durante a pandemia, 63% são mulheres e apenas 23% homens. Elas também são maioria entre os responsáveis pelas refeições (68%) e pelo acompanhamento escolar dos filhos (71%).
“Existe uma tendência de a mulher se sobrecarregar. Eu faço as coisas porque precisam ser feitas. Nós temos isso na nossa cabeça. No final das contas, estamos trabalhando muito mais e isso não é a Adriana, são os números que demonstram o quadro social instaurado”, defende a mãe de Luke e Gael.
O impacto maior da pandemia na vida das mulheres também é apontado por Camila. Ela diz que as dificuldades variam de acordo com a forma que cada pessoa lida com as situações, mas gostaria de ver mais a participação dos homens nas tarefas do dia a dia. O pai de Maria, por exemplo, não é presente na criação da pequena.
No caso de Ana, o marido também a o dia fora de casa, e às vezes também precisa viajar a trabalho. Por isso, cabe a ela e à filha de 11 anos grande parte do serviço doméstico. “Quando ele chega do trabalho, fica um pouco com as gêmeas, porque logo em seguida elas dormem. Enquanto ele cuida delas, eu começo a arrumar a casa”, diz.
Ana irá retornar ao trabalho em junho, quando termina a licença maternidade. Como trabalha nas madrugadas, o marido ficará responsável por cuidar das filhas.
Reflexão e agradecimento 1k49l
Mesmo com um Dia das Mães longe da mãe e da avó, Ana acredita que, depois de um ano de pandemia, marcado por tanta dor, o mais importante é agradecer. “Diante desse último ano, agradeço todos os dias porque não perdi ninguém”, destaca.
“Com tanta gente que perdeu, minha família aumentou. Ganhei mais dois presentes, motivos pra agradecer. São meus bens mais preciosos.”
Em meio à falta de tempo e exigências que a rotina impõe, Camila fala do quanto é grata pela família que constrói com Maria. “Percebo como precisamos disso [da convivência], é um amor sem igual. Eu olho para ela, às vezes meio assim [em momentos de fragilidade], então recebo o abraço dela, e me dá um aconchego. Não preciso de mais nada: sou eu e ela”.
Adriana também aguarda o conforto dos abraços e beijos nos filhos como o grande presente do próximo domingo. “Para mim, é ficar com eles, tê-los perto de mim. Tenho dois filhos homens que serão capazes de reconhecer que tiveram uma mãe que batalhou por eles.”
Para ela, o momento também é de reflexão. “A pandemia penalizou as mulheres acima de qualquer outro grupo. Nesse Dia das Mães, mais do que um cumprimento, é uma parada para refletir como a sociedade está tratando suas mães e suas mulheres.”