As mudanças de cidade eram frequentes. Só Madge Anne, a mãe, mais tarde a irmã mais nova, algumas malas e a soma de muitas casas e onze escolas para guardar na lembrança. Nunca conheceu o pai, e o resto da família também não era muito presente. Tudo isso com o agravante de viver em um país que enfrenta uma das piores crises política, social e econômica do mundo: o Haiti.

As memórias da infância e adolescência não são as melhores, mas como poderia? Onde deveria encontrar uma sólida base para crescer em felicidade, encontrava violência. “ei por muitas coisas horríveis com minha mãe. Me machucava com ferro ou qualquer coisa que tivesse”, relembra.

Era ela por ela. Precisou desde sempre entender que estava sozinha e que deveria, apesar das feridas, fazer o possível e impossível caso quisesse mudar essa realidade. Foi assim que se apegou no conhecimento e os eios culturais viraram seus melhores amigos.
Em 2014, viu sua mãe falecer. Com apenas 15 anos, começava os os para uma nova vida. Precisou mudar para a casa da tia, que mal tinha contato. “Foi uma obrigação para a família me colocar ao redor deles”, conta.

Madge, que sempre notava uma enorme diferença de tratamento da família com ela, acreditou ter que ser perfeita para poder fazer parte dos familiares. “Estou sempre me esforçando para ser uma pessoa perfeita para agradar. Eles têm muita vergonha da minha mãe e não quero isso para mim, quero que eles sintam orgulho de mim”.
Com tamanha sobrecarga, os dias começaram a ficar ainda mais sombrios na sua mente. Era depressão. Mais uma vez, sozinha, compreendeu estar precisando de ajuda e, aos 17 anos, procurou por conta própria a terapia. “Comecei a me interessar por psicologia com 13/14 anos, pois sentia que tinha uma coisa errada comigo (…). O ambiente era muito pesado para uma criança. Tive que cuidar da minha mãe e da minha irmã mais nova, porque minha mãe estava sempre doente”.
Como se não fosse o suficiente ar por todos esses obstáculos, Madge é mulher e, como todas nós, vivenciou o machismo desde cedo. Ela, que se denomina uma “rebelde”, enfrentou as ordens da família de que deveria cuidar da casa ao invés de estudar ou, muito menos, trabalhar fora.
Apesar disso, Madge garante ser grata pela família que tem. “Eu queria agradecer a minha família e dizer que não tenho rancor e nem sinto coisas ruins no meu coração sobr eles. Eu os amo e quero que gostem de mim”.

O problema é o universo ser pequeno demais para os sonhadores, e a jovem sempre planejou voos altos e viu uma oportunidade no Brasil de alcançá-los. Em meio à pandemia do coronavírus, em 2020, veio para Santa Catarina com a mala cheia de coragem. Não falava português, mas tratou de aprender com a ajuda do YouTube, já que além de tudo é autodidata.
E se engana quem pensa que essa seria a segunda língua da jovem. Que nada! Com o plano de viajar pelo mundo, tem o crioulo haitiano como a língua materna, o francês como segunda língua, o inglês fluente, o espanhol intermediário, agora o português (que já está dominando) e ainda planeja começar a estudar italiano e alemão muito em breve.

De menor aprendiz a estudante de psicologia na maior universidade de SC 6zl6w
Essa poderia ser uma história triste, mas não é. Pelo contrário, é de superação e determinação. Madge Anne chegou em Santa Catarina em um momento complicado até para quem já estava aqui, demorou cerca de sete meses para conseguir o primeiro emprego.
A primeira oportunidade não foi com o salário mais alto ou com a melhor posição, mas a trouxe muita felicidade e esperança. Foi contratada como jovem aprendiz e demorou poucos meses para que o gestor notasse que ela era merecia um cargo maior e a tornasse recepcionista. “Meu ado é muito feio e isso sempre foi uma motivação para mim, eu sempre pensei que tinha que mudar isso, pois eu posso escolher o agora e ser a pessoa que eu quero”, garante.

Madge Anne é alegria. Sempre com um sorriso enorme estampado no rosto, a por todos os setores da empresa para desejar um bom dia. Sabe o nome de todo mundo de cor e já até arrisca fazer algumas brincadeiras em português.
Na recepção, um colega brinca:
– A Madge já está com um sotaque “catarina”. Não achou, não?
Eu concordei. Acho que logo, logo vai estar falando “se tu diz, tanso, cagaço” e por aí vaí…
– Eu? Vocês acham mesmo?
Ela perguntou rindo. Estava orgulhosa de si mesma. Quem está aprendendo uma nova língua sabe que isso é um grande elogio.
E deveria estar orgulhosa mesmo, pois apesar de crescer em uma família disfuncional, vivenciar a depressão, crise no país, vinda para um país novo, pandemia e mais um caminhão de fantasmas que não couberam aqui nesse texto, Madge Anne realizou mais um sonho recentemente. E esse foi daqueles enormes! Ela ou para psicologia na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e já começou a cursar.
Questionada sobre as próximas etapas, ela nem pensou para responder: “Quero ser psicóloga, falar sete línguas e viajar muito”. Além disso, Madge Anne sonha em adotar a irmã mais nova que ficou no Haiti para ela também poder morar no Brasil. Com tanto foco, a gente sabe, já deu certo. “É só consistência que vou chegar no ponto que eu quero”, finaliza.